Crime: uma análise sobre o homicídio difuso

João Ibaixe Jr. é advogado criminalista e pesquisador do Grupo Direito e Modernidade da USP

Há uma foto circulando nas redes sociais em que uma caneta aparece ao lado de uma arma de fogo, com os dizeres aproximados “uma caneta na mão de um político corrupto é muito mais mortal do que um revólver”. Há um filme argentino chamado “Lugares Comuns” em que o protagonista é um professor e escritor, cujo livro em que ele está trabalhando chama-se “assassinos difusos”. O argumento do livro é justamente este: políticos corruptos são assassinos difusos porque, roubando verbas públicas, matam as pessoas cujas vidas dependiam dos investimentos a serem feitos com aquele dinheiro. Matam difusamente, sem ter uma vítima específica, mas fazendo milhares delas. Passei a adotar essa nominação de “assassino difuso” para o agente político que pratica corrupção, porque mata indistintamente a quem deveria defender. Na legislação não existe crime para essa figura.

O crime, quando assim praticado, é previsto em nosso CP (Código Penal) no art. 317 com o nome de “Corrupção Passiva” – o que confunde estudantes e cidadãos – envolvendo qualquer funcionário público que solicite ou receba vantagem indevida em razão de sua função. Aqui se incluem os agentes políticos de todas as esferas, misturados a outros funcionários, que são servidores públicos também, mas que não exercem cargo ou função política. E isto é um erro da legislação. Para esclarecer o leitor, faço um parêntese de que o cidadão comum que oferece ou promete vantagem a funcionário público, para este praticar determinado ato, também responde por crime, neste caso denominado de “Corrupção Ativa”, previsto no art. 333 do CP. Por que afirmo que é um erro inserir na mesma figura o agente político e o servidor público comum, ambos no mesmo conceito de funcionário público? Porque as ações do último dificilmente serão tão graves quanto as do primeiro. Imagine o leitor, um coveiro que recebe dinheiro para enterrar mais rapidamente um corpo pertencente a determinada família e um político que desvia milhões em benefício próprio.

Qual será mais gravoso? Qual tem mais condições de ferir do modo mais amplo um número maior de cidadãos? O agente político reúne poder de decisão sobre a vida dos cidadãos. O desvio de verba pública é muito mais odioso e afeta muito mais gente que outros ilícitos de outras categorias de funcionário público. Por isso, o agente político corrupto deveria ser conhecido por “assassino difuso”. Seu crime é retirar a esperança de vida melhor de um conjunto inominado de cidadãos, tanto os cumpridores de suas obrigações, como aqueles menos favorecidos que anseiam por justiça social. O crime de corrupção do agente político deveria ser chamado de “homicídio difuso”. Não basta ser colocado no elenco dos chamados crimes hediondos, para entrar no rol de uma lei que de nada serve. Há que haver um estudo mais eficaz sobre esta forma de ilícito para se criar o crime específico para o político corrupto, que, com sua nefasta atividade, mata difusamente a possibilidade de existência da própria cidadania. Uma última palavra. O chamado “pacote anticorrupção” é outra falácia, aprovada para atender à urgência de manifestações recentes. Na lei e na prática, nenhuma medida criminal foi adotada ou definida, só medidas administrativas, envolvendo empresas. Talvez a única função efetiva seja a de trazer a ideia do “compliance”, que significa “observância”: um conjunto de medidas que a empresa deve adotar para fazer serem observadas as regras éticas e de legalidade de seus atos.

Ou seja, um mecanismo para obrigar a cumprir a lei, que é o instituto no Estado Democrático de Direito que, por si só, já deveria obrigar a todos. Em resumo, compliance é um meio para se cumprir a obrigatoriedade da lei, cuja essência é a de ser obrigatória! Sei que estou me expondo a críticas por dizer isto, mas, da perspectiva penal, as coisas ficam na mesma. De nada adianta a responsabilidade da empresa ser objetiva, pois o agente fraudador, que pode ter praticado diretamente o ilícito, junto do político corrupto, não será punido criminalmente. O problema é não haver lei específica – diga-se bem trabalhada e redigida – para tratar dessa figura criminosa, nem um modelo de investigação apropriado para se saber quem e como tais condutas são praticadas. Por isso, a crítica dos diretores jurídicos de empresas que não conseguem investigar e punir seus funcionários que praticam ilegalidades conluiados com agentes políticos corruptos.

No fim, quem sofre é o cidadão, que vê seus sonhos destruídos e suas perspectivas existenciais assassinadas pelos autores desse crime cujo nome correto é “homicídio difuso”.

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